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A história que fala conosco

Por que será que algumas histórias nos impactam tanto?

Obs. Texto também publicado no Medium. Se preferir ler por lá, clique aqui.

Em 2023, eu participei de uma oficina de formação para contadores de histórias. Foi uma experiência maravilhosa em que tive a chance não somente de aprender as bases teóricas desta arte milenar, mas também colocá-las em prática para o público.

Em um dos primeiros encontros, nosso professor falou algo que ficou rondando minha mente por vários dias:


“Toda história que contamos é sempre sobre nós mesmos”


Evidentemente essa frase tinha um significado maior, mas à primeira vista era natural que causasse um certo estranhamento.


“Ora, não. Se eu conto a história da Chapeuzinho Vermelho eu estou contando a história da menina que ia sozinha pela estrada a fora. Afinal, eu nunca andei pela floresta usando uma capa vermelha para levar doces à minha avó”.


Porém, para entender a profundidade deste pensamento é preciso ir além do mundo concreto e, seguindo o conselho do nosso querido Antoine de Saint-Exupéry, buscar a essencialidade que permanece invisível aos olhos da carne.

Johannes Plenio via Unsplash

Como estávamos em um curso de contação de histórias, naturalmente o professor focou no que contamos e sobre como isso dizia muito sobre nós. Entretanto, esta lógica pode ser aplicada para qualquer narrativa que tenhamos contato.

Assim, independentemente se a pessoa em questão for um contador de histórias, um escritor ou um leitor, existem algumas narrativas que nos atingem mais que outras, seja porque elas nos proporcionam um quentinho no coração, instigam nossa mente ou nos dão uma bela chacoalhada.

No meu caso, quando tivemos que escolher um conto para um determinado exercício, não pensei duas vezes e escolhi a “Lenda da Concha”, uma adaptação retirada do “Livro das Virtudes para as Crianças” que contém um lindo ensinamento sobre compaixão e generosidade.

Talvez eu comente mais sobre ela em outra ocasião…

Enfim, mas por que será que dentre um universo infindável de histórias meu eu interior clamou pela “Lenda da Concha” e não “Os Três Porquinhos”, “A Bela e a Fera” ou alguma aventura da boneca Emília? Aliás, nada contra nenhuma delas (muito pelo contrário, gosto de todas!), mas por que aquela lenda específica me tocou tão profundamente?

Acontece que, de alguma forma, aquela história criou uma conexão sutil com algo dentro do meu ser, talvez pelos valores transmitidos, por ela me remeter a alguma lembrança importante ou ainda porque algo no meu íntimo precisava daquela história para um processo de autoconhecimento.

Tente recordar de uma narrativa marcante que você conheça desde a infância (ou pelo menos há muitos anos). Que sentimentos ela evoca em você? Quais são os pontos da trama que mais lhe chamam a atenção e por quê? Quais paralelos você consegue fazer com sua vida?

Os motivos podem variar, mas é um fato que a narrativa que escolheu foi capaz de estabelecer uma conexão sutil com você, mesmo que a razão por trás disso tenha lhe passado despercebida.

A conexão sutil

Histórias e simbolismos

Geralmente, as histórias mais antigas e duradouras, a exemplo dos contos de fadas, são carregadas de simbolismos e arquétipos que falam muito da nossa sociedade e da natureza humana.

Elas se tornam atemporais justamente por sua capacidade de tocar em temas comuns à humanidade a despeito do século que foram criadas.

As relações humanas, os diferentes ritos de passagem e até mesmo o enigma da morte são encontrados nestas histórias. Algumas vezes eles aparecem de maneira bem evidente e em outras se valem do auxílio da simbologia.

Para ilustrar, podemos considerar o já mencionado conto da Chapeuzinho Vermelho. Na realidade, vou trazer aqui apenas dois exemplos já que para falar devidamente sobre o simbolismo desta obra seria necessário um texto especial somente para este fim:

Cyph1n via DeviantArt

1- A jornada de Chapeuzinho pela floresta: as florestas podem receber uma gama variada de significados. Porém, um dos mais comuns é que ela representa o próprio inconsciente dos indivíduos. Assim, quando a personagem entra na floresta, ela estaria, na verdade, adentrando ao interior da sua mente e quando sai de lá, o faz transformada.

2- Ciclos de passagem: em Chapeuzinho Vermelho, um dos elementos mais destacados no conto é justamente a cor vermelha de sua capa, embora em algumas versões ela seja dourada. Se considerarmos o vermelho, uma interpretação bem recorrente é que ele estaria associado à cor da menstruação e, portanto, assinalaria a passagem da infância para a puberdade da menina.

Ainda dentro desta lógica, acho particularmente interessante notar que a interação de Chapeuzinho com as outras duas personagens femininas da história são justamente sua mãe e sua avó. Para mim, esta é também uma outra representação bem evidente do ciclo de vida de uma mulher que começa como uma criança, passa pela fase adulta e finalmente chega à maturidade.

Histórias e cura

Para além da importância do simbolismo, muitas histórias com as quais nos conectamos desempenham um papel fundamental de cura emocional.

Tal qual a própria neurociência já provou, quando nos ligamos a algum personagem o nosso cérebro libera ocitocina, neuro-hormônio responsável pela geração de empatia e vínculos de afeto. Assim, mesmo se tratando de um ambiente ficcional, o cérebro reage como se fôssemos nós a estar passando por aquela situação do personagem.

De acordo com as descobertas recentes da neurociência, isto pode ser visto como uma resposta evolutiva de criaturas sociais.

E faz muito sentido. Afinal, se nossos ancestrais ouvissem um relato positivo de outro membro da tribo, poderiam replicar com mais facilidade e receber os benefícios de tal ação. Por outro lado, se fossem alertados de um evento negativo, seus cérebros “sentiriam” o que o emissor da mensagem sentiu e, devido ao instinto de sobrevivência, evitariam reproduzir o ocorrido para não ter que lidar com consequências adversas.

Hush Naidoo Jade Photography via Unsplash

Mesmo que hoje em dia não vivamos mais em uma comunidade de caçadores e coletores na qual estes relatos poderiam ser a diferença entre a vida e a morte, este traço evolutivo de aprender através das histórias permanece em nós e pode ser muito útil para lidar com questões emocionais. Por exemplo, se você está enfrentando alguma dificuldade pessoal ou profissional, uma história de superação pode lhe dar a força necessária para enxergar que existe uma luz no fim do túnel.

Até hoje me lembro de uma pessoa que compartilhou comigo sua experiência catártica após assistir ao filme “Viva: A vida é uma festa” e como ela pode fazer as pazes internamente. Na época, eu não tinha ainda visto, mas quando finalmente dei uma chance não só me enamorei por aquela linda história (que por sinal eu recomendo bastante!), como também passei pelo meu próprio processo de cura interior.

Aliás, até hoje eu choro com aquela cena icônica do final. Você também se lembra dela?

Em suma, não escolhemos histórias aleatórias. Sendo assim, da próxima vez que se sentir conectado a alguma narrativa, pare uns instantes para refletir o que o seu eu interior quer lhe ensinar através dela.

Ah! E pode ser que uma história não faça tanto sentido para você em uma determinada fase da sua vida, mas seja basilar em outro momento. Para falar mais sobre isso, no próximo texto quero compartilhar algumas reflexões que tive ao ler “O Pequeno Príncipe” pela segunda vez.

Até a próxima!